segunda-feira, 19 de novembro de 2012

ELEIÇÃO INCONDICIONAL: USOS E ABUSOS



Creio na doutrina da eleição porque ela está nas Escrituras. Creio que uma vez salvo, salvo para sempre. Mas aceito a liberdade das causas secundárias, fatores de condicionalidade peculiares ao tempo e à história (CF cap. III). Creio que Deus predestinou os fins, mas também os meios. Ele escolheu em seu bem Amado Filho antes da fundação do mundo aqueles a quem quis “segundo o beneplácito da sua vontade”, e não por uma mera previsão de obras ou de fé (Ef 1.5, 9, 11). Aceito isto de todo o meu coração. Creio, no entanto que, como “causas secundárias antes estabelecidas” desta salvação estão a conversão, a fé salvadora, a santificação sem a qual ninguém verá o Senhor, bem como a perseverança dos verdadeiros crentes na “fé que é dos eleitos” (Tt 1.1). Depreendo disso que, além de causas secundárias, estas coisas são também evidências da nossa comum salvação. Não raramente, no entanto, percebo que a doutrina bíblica da eleição não somente é mal compreendida, como também mal utilizada e mal aplicada, principalmente por aqueles que dizem crer nela. Precisamos avaliar três fatores antes de ensinarmos esta doutrina:
Primeiro, a que público devemos ensinar. Temos na Escritura o princípio de que “o alimento sólido é para os adultos”, para os maduros na fé, enquanto as “crianças em Cristo” não podem suportá-lo, sendo necessitadas de leite (Hb 5.13-14; 1 Co 3.1-2). Embora ambos os textos sejam reprimendas à imaturidade culpável, o princípio permanece: o alimento sólido é para os adultos. Ora, a doutrina da eleição é alimento sólido. Estamos tratando da vontade decretiva de Deus que é, como ensinamos, secreta. E se quanto aos crentes precisamos ter este cuidado, quanto mais em se tratando de incrédulos?  
O segundo fator a considerar é a relevância no que diz respeito tanto ao público como ao propósito do ensino. Às vezes ouço colegas mencionarem a eleição desnecessariamente, em contextos que pedem ênfase à responsabilidade humana.  Para citar um exemplo, não creio ser conveniente nem relevante ensinar a doutrina da expiação limitada aos não cristãos da perspectiva da eleição. Até porque é possível fazê-lo da ótica da responsabilidade humana. Exemplifico: é igualmente verdadeiro e mais relevante dizer ao não cristão que o sacrifício de Cristo é suficiente para cobrir os pecados do mundo inteiro, mas é eficiente apenas nos que crêem (que são os mesmos eleitos). Não é desta perspectiva que essa doutrina é tratada em João 3.16?
O terceiro fator é a motivação pela qual uso a expressão. Há, por exemplo, aqueles que usam os termos “eleição” e “eleitos” a torto e a direito, só para se afirmar. Pensam eles que para se legitimarem como reformados ou calvinistas têm que usar tais termos a toda hora. Outros usam a doutrina de maneira frívola, dizendo-se eleitos sem demonstrar em sua vida e conduta nenhuma evidência disso. Já vi gente dizendo-se calvinista e convicto e sua própria eleição enquanto vive uma vida deliberada de pecado. Ora, Aquele que nos salvou da pena do pecado também nos salva do poder do pecado, razão porque todos os que vivem deliberadamente em pecado, ainda que sejam bons calvinistas, apenas professam conhecer a Deus, mas “o negam por suas obras” (Tt 1.16). A estes convém lembrar a lição de casa: a causa primária – o Deus soberano que nos escolheu e predestinou segundo o seu beneplácito em Cristo – não anula as causas secundárias, porque as estabeleceu como curso de sua ação na história e elas são baseadas no seu caráter santo e imutável. Estas funcionam para nós como marcas, evidências de nossa salvação, frutos do arrependimento que o Senhor nos concedeu. Dessa forma, não temos autorização para declarar frivolamente que estamos eleitos sem apresentar os frutos dessa eleição estabelecidos por Deus desde a eternidade como comprovação de nossa salvação, os frutos de justiça e santificação (Rm 5.22). Por isso, o Senhor Deus nos ordena a examinarmo-nos a nós mesmos se realmente estamos na fé (2 Co 13.5), a confirmar – isto é, constatar pelos frutos – nossa vocação e eleição, pois, como diz o Espírito na Escritura, “é dessa maneira que vos será amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 1.11). Por essa mesma razão também é que podemos dizer que “aquele que perseverar até o fim será salvo” (Mt 24.13) e “se retroceder, nele não se compraz a minha alma” (Hb 10.38). Pois estas são causas secundárias da eleição, estabelecidas por Deus como parte do curso da vida dos eleitos. Esta última – a eleição – só pode ser considerada na presença daquelas – a santificação e a perseverança. Além disso, a doutrina bíblica em questão é para nos dar não apenas conforto e segurança de salvação, mas também humildade e senso de propósito, pois aquele que nos escolheu, fê-lo “a fim de sermos santos e irrepreensíveis”. Diante dessas verdades deveríamos ter bastante cuidado e reverência ao tratarmos dessa tão preciosa doutrina e santo temor ao nos denominarmos de “eleitos”. Ou seremos culpados do mesmo pecado do povo de Deus denunciado por Jeremias: “Que é isso? Furtais e matais, cometeis adultério e jurais falsamente, queimais incenso a Baal e andais após outros deuses que não conheceis, e depois vindes, e vos pondes diante de mim nesta casa que se chama pelo meu nome, e dizeis: Estamos salvos; sim, só para continuardes a praticar estas abominações!” (Jr 7.9-10). Preciso terminar enfatizando mais uma vez que creio na doutrina bíblica da eleição incondicional. Prego-a e ensino-a sempre que exponho um texto que trate dela. E faço-o com alegria. Mas procuro igualmente demonstrar aos meus ouvintes a necessidade de se autoavaliarem se realmente apresentam os frutos que acompanham os eleitos. Pois “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29).

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

PEDRAS E VIDRAÇAS


«Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra». Jo 8:7

A maioria das pessoas conhece a frase acima e a usa, especialmente quando é a seu favor. Algumas usam do modo certo, outras com uma interpretação equivocada. A frase foi falada por Jesus a um grupo de escribas e fariseus que haviam trazido à sua presença uma mulher surpreendida em adultério e estavam prestes a matá-la a pedradas. Eles fizeram-na ficar em pé, no meio de todos, expondo-a à vergonha (Jo 8.3). A lei de Moisés sentenciava os adúlteros à morte (Lv 20.10; Dt 22.22-24). Eles citam a lei, perguntando a Jesus qual sua opinião. Sua intenção clara não era glorificar a Deus, mas tentar Jesus para ter do que o acusar (8.6). E, depois de muita insistência da parte deles, Jesus lhes responde com as palavras acima grafadas.
A resposta de Jesus indica que ele não considerava o adultério coisa de somenos. Ele não questiona a lei. Não fala nada que sequer insinue a inocência da mulher ou que negue a gravidade do pecado. Ele sabia e concordava com sua própria palavra, que «o que adultera com uma mulher está fora de si» (Pv 6.32) e que o adúltero «achará açoites e infâmia e o seu opróbrio nunca se a pagará» (Pv 6.33). Também não estava o Senhor sugerindo que este pecado hediondo não deveria ser julgado e  punido com rigor. Ele mesmo estipulou os procedimentos a serem adotados pela igreja quando alguém peca, dando à igreja autoridade para atar e desatar (Mt 19.15-20).
Em primeiro lugar, o que Jesus quer dizer quando fala: «Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra» é que quem acusa o faltoso precisa ter coerência. Não pode querer tirar o cisco do olho do irmão quando tem uma trave no seu próprio olho (Mt 7.1-5). Quem quer tratar do pecado precisa começar com a própria vida. Sem coerência, ninguém tem autoridade para julgar. Foi por falta de coerência entre a pregação e a vida que os escribas e fariseus se retiraram (8.9).
Em segundo lugar, as palavras de Jesus significam que quem acusa o faltoso precisa fazê-lo com temor e tremor. É necessário o acusador ter em mente que é um réu justificado pela graça, um pecador tratando com pecadores. A frase «Aquele que dentre vós estiver sem pecado...», faz-nos lembrados de que, perante Deus, «não há justo, nem sequer um» (Rm 3.10), «porque todos pecaram e carecem da glória de Deus» (Rm 3.23). Por isso, toda disciplina deve ser ministrada com espírito de brandura e com a consciência do perigo da própria queda (Gl 6.1).
Em terceiro lugar, Jesus quer nos ensinar que quem acusa o faltoso deve fazê-lo com espírito de perdão. O próprio Jesus declara o perdão à mulher, quando diz: «Nem eu tampouco te condeno», embora a tenha advertido quanto aos frutos do arrependimento: «Vai e não peques mais». A igreja só tem o direito de rejeitar o faltoso como gentio e publicano se ele permanecer incorrigível e contumaz (Mt 18.17). Diante dessas verdades, podemos entender porque a palavra de Deus nos recomenda: «Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado» (Gl 6.1). Por que hoje você é a pedra. Amanhã, pode ser a vidraça.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

PAZ NO VALE



“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam” (Sl 23.4)

Literalmente falando, o vale é uma “área de baixa altitude cercada por áreas mais altas, como montanhas ou colinas”. Na cultura bíblica, o vale é figura de uma condição de humilhação e sofrimento. O vale é lugar de solidão, de sensação de desamparo, de esmagamento da alma. Quem está no vale, se percebe cercado por montanhas, que projetam suas sombras, tirando o senso de direção. A escuridão do vale traz a cor da morte. Ali, naquele lugar frio e escuro, o cerco do inimigo nos deixa encurralados. Sente-se o perigo, o “terror noturno” percorre a espinha, mas a escuridão do vale não nos permite saber de onde virá “a peste que se propaga nas trevas” (Sl 91.5a, 6a). Essa desorientação, somada ao terror, produz uma angústia profunda na alma, de tal intensidade que chega-se a senti-la fisicamente. O vale é um lugar terrível como a morte; um lugar sem saída, um caminho sombrio por onde ninguém neste mundo gostaria de passar. Mas todos passam.

Contudo, para os que pela fé em Cristo se tornaram “o seu povo e rebanho do seu pastoreio” (Sl 100.3b), há paz, segurança e consolo no vale. O “Supremo Pastor” está conosco no vale, e não está de mãos vazias. Sua vara e seu cajado são a garantia de que não morreremos no vale. Primeiro porque, assim como o pastor batia amorosamente na ovelha prestes a se desgarrar, a fim de trazê-la de volta, o Senhor nos disciplina no vale quando nosso desespero e incredulidade nos levam a procurar caminhos que, longe de nos tirar do vale, levar-nos-iam à destruição. Em segundo lugar, com uma das suas extremidades pontiagudas, o pastor a usava para afugentar predadores prestes a devorar a ovelha desavisada. Do mesmo modo, nosso Supremo Pastor nos protege em nossa fragilidade exposta no vale, a fim de que o inimigo de nossas almas não nos toque (1 Jo 3.18). Na outra mão trazia o pastor o cajado, cuja ponta arqueada era usada para puxar a ovelha pela perna ou pelo pescoço para junto de si, ou para junto do rebanho. A vara só era usada quando a ovelha resistia à tração do cajado. Não há consolo maior do que quando, sufocados pela escuridão sombria do vale, somos “puxados” pelo Senhor para junto dele e trazidos de volta do pesadelo da solidão à realidade de sua companhia sustentadora. “Vara” e “cajado” são figuras que nos lembram que, na comunhão do Senhor, teremos disciplina, proteção, direção e segurança no vale. À luz da totalidade da revelação, ficamos sabendo, ainda, que o nosso Bom Pastor tanto nos amou que passou ele mesmo pelo vale e bebeu, em nosso lugar, o cálice da morte. Ali naquela cruz ele desceu o mais profundo dos vales, recebendo sobre si “o castigo que nos traz a paz” (Is 53.5). "Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca" (Isaías 53:7).

Não podemos evitar o vale. Contudo podemos desfrutar da segurança e do consolo do Senhor Jesus. Por isso, podemos cantar no vale: “O Senhor é meu pastor nada me faltará”. Pois em cada experiência de perda, angústia, tristeza, opressão, fraqueza e humilhação que passarmos neste mundo, a vara e o cajado do Bom Pastor nos assegurarão de que quer caminhemos “por sobre os montes”, quer passemos “pelos vales” estaremos “sempre na luz”. Diante dessas verdades, podemos afirmar confiadamente, mesmo que passemos pelo vale: “Bondade e misericórdia me (per)seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do Senhor para todo o sempre”! Amém!